às vezes vento



e por falar em nuvens
não me conserve
em imprecisas palavras
em tintas sobre o papel
porque o que você vê
é apenas uma parte de mim
ou de um quebra-cabeça
das horas em que me distraio
na lucidez ou na loucura
do meu sorriso que perdeu
a eletrônica amarela de um 3x4
e sou demais para uma página
para um tela ou um retrato
não sou imagem nem miragem
sou de verdade

[uma verdade
que sopra nuvens]



outras intenções



ele
é do tipo que carrega flores na boca
e rega palavras só pelo prazer
de me ver perdida no jardim
em que sonho nua os sonhos dele

ele
me acende o olhar de menina
em plena luz do dia
e me faz pensar nas infinitas melodias
das quedas de cachoeiras
e em pés descalços no meio do mato

ele
enche meu olhar de encanto
de vinho, de avidez
e de malícias
e me descobre sem nenhuma disciplina
quando insinuo dias quentes de verão
e adivinho sabores e cheiros

ele
tem esse mistério e me fascina
mas eu quero os outros nele
eu quero muito mais

e
ele
é muito!



a janela improvável



um homem está na janela
e ele que não ocupa nenhum lugar
vem sendo reconhecido pela ausência
e pelo grito encerrado na boca
com cheiro de menta
– numa improvável janela
que o emperra...

a inexistente janela sem horizontes
se cansa de sustentar cotovelos
e passados
do homem anestesiado
– numa improvável janela
sem pássaros...

o homem não abre mais a janela
nem abre os braços
não ergue os punhos nem levanta a voz
e depois de cheirar gás carbônico
dorme e não sonha
– nem com a improvável janela
sem amanhãs...



até o fim



escrevo apesar das buzinas
do gás carbônico
do meu caminho sem árvores
das centenas de grades
por todos os lados

escrevo apesar de tudo
por tudo ou por nada
até que anoiteça de vez
e a poesia se apague
como se houvesse de repente
um blackout



transgressões

Para Rubens Pesenti


eu sei que você conhece as regras
e o lado do avesso da camisa
que estampa palavras no peito
eu sei que você sabe
que tudo que fizemos foi pouco
enquanto você já estava muito além
dessa liberdade que nos aprisiona
eu sei que você ri do nosso riso
e que você tem a cara lavada
para falar de tabus e de esfinges
eu sei que você matou o crime
os reis, os bispos, os cavalos
destruiu a fortaleza das torres
e comeu todas as damas
e ainda confessou as nossas vidas
estranguladas
por essas inúteis esperanças
e sei que nas horas vagas
você tem o uivo de um animal
bioquímico
e que por isso mesmo
tem essa capacidade absurda
de amar
e eu sei disso tudo
às segundas-feiras
quando acordo dos meus sonhos
e você, meu amigo
me captura en passant



poema têxtil

[Parceria com Mercedes Lorenzo, do blog Cosmunicando]


encolheu de repente
mesmo assim tento vesti-la
e passo primeiro a cabeça
pelo avesso de mim


depois da mente no ato
vou enfiando meus braços
então a palavra se esgarça
e eu ainda espremo
o que é preciso exprimir


do que já é coração
quando visto meu peito
fibra e urdidura

é apenas o começo

e nessa crescente alegria
de desmanchar a costura
nem poema caberia



degraus ou asas



escrevo e reinvento-me
em folhas brancas
nessa fotossíntese de sonhos
e nos azuis imprevistos
dos meus planos de vôo
para todo bater de asas
e todos os versos-ventos
soprados por meus dedos
me arrastam para dentro
onde rios murmuram em meu sono
e nuvens me emprestam escadas