incômodo



nenhuma palavra
pairando sobre minha cabeça
nenhum poema


[apenas pianos invisíveis]


nem sei se esse vazio
existe, afinal,
mas me devasta



o gesto dele



A faca não corta o fogo; mas arrisca
Para Adrianna Coelho


Cortemos apenas um gesto:
a mão perfeita, por demais
perfeita. Cortemos o
atrevimento de se ser
perfeito; o mais,
deixemos quieto.


Cortemos as quimeras
as tessituras por demais
simétricas, os contextos
e sólidas estruturas, e
deixemos o andar manco
o verso manco e branco,
o olhar reverso o breu e o
branco, quando se dão no
palco.


Cortemos apenas um gesto
com faca afiada: a frase de
fogo em sublime metamorfose,
a frase que não se apaga nem na
neve; a metamorfrase na porta do
templo - de Zeus, de Hera -, que
também é
nave.




Marcelo Novaes



contexto sentido

Para Lau Siqueira


"Frágil, contém
Poesia
Frágil, contem"
Lau Siqueira, em "Texto Sentido"



são poucos os pavios
que me acendem


somente as palavras
me incendeiam a língua
cabelo unhas pele
e dentes


arrisco-me em cada página
com a ponta dos dedos
como se riscasse
um fósforo
e lanço-me em chamas


nas contexturas de fogo
do texto sentido
a poesia inflama


[frágil sou eu!]



acasos



minhas palavras
não sabem destinos


encontro o poema
a duras penas
quando adivinho
nas linhas da mão


a minha imagem
impossível



bichos flores e libido



tenho a fauna
e a flora
em minhas palavras
e uma expectativa vegetal
de brisas e orvalhos
e sons de asas


línguas
coisas escorregadias
e úmidas
limos e lagartos
absortos ao sol


e num poema
desejos desfolhados
e agudos apetites
unhas-de-gato
sobem agarrados
às minhas pernas


[e eu já hera]






* Publicado no Blog de 7 Cabeças

entre.lace.me



esses silêncios
sob meus dedos
não explicam o motivo
traçado por essas linhas
não destramam as palavras
nem desfiam os versos


e ainda que tudo trema
refaço meus passos
sobre o teu chão
de poemas



vinho a dois



hoje meu olhar embriagado
desenha um destino
e bebe o vinho que torna
a palavra desenfreada


na sua boca cheia de luz
um vermelho azul
sonha-se em imagens cristalinas


sinto os elos sutis
que nos ligam a esse mundo
desnorteado por paralelas linhas


não me importo de seguir miragens
porque é muito quente esse sentir
e é muita sede para matar
na sua rede ou na minha teia


eu quero rir junto
depois de acordar


[embriagada de baudelaire
e outras insurgências]





síndrome



dentro de cada poema
tenho sintomas
medos e arremessos
coragens e tremores
um riso e um choro
que me arranham
ou anestesiam
e a palavra suada
que me dilata as pupilas



sinapse



desde então a palavra
percorre minha medula
e se ramifica em versos
e signos


revelo meus impulsos
e caligrafias distantes
atravessam meus abismos


[um poema me arrepia]



mar aberto



tenho um poema
com a iminência dos oceanos
a ânsia de infinitos
e a latitude dos sonhos


um poema de marés convulsas
sal e naufrágios
desejando a hora
de aportar em teu farol



o toque



você gira o dial
e muda a estação
mas sua voz rouca
ainda roça
minha nuca urbana
e seus verbos me acendem
intimamente


oscilo entre umidades
embriaguez e danças
onde você me toca
e é indelével



poema ao ocaso



sem tapetes
nem preces
resistem meus propósitos
uma dança pacífica
sobre a areia dos meus olhos
e essa vontade crescente
e incontida
de contemplar-te


não sei a direção
que o sentido das minhas palavras
segue


não sei se elas
se dissipam com o vento
ou te alcançam
e sopram em teus lábios


me orienta



a pêlo



mimetizo nossa trama
de desejos e cantos
e danço sobre você
para restituir-me
ao vinho e ao toque
aos apelos da pele
das bocas e pernas
até alcançar em pêlo
o silêncio da queda



sensação



num poema
abrem-se em mim
todas as ânsias
como se fossem asas
batendo alucinadamente
dentro do meu peito



ca-picture-me

para Moacy Cirne


quadro a quadro
com o pincel
compenetrado
me pinta
e transborda
a tinta
em minhas curvas
e minhas linhas
e no meio
me revista



okavango



tudo em meu poema
desce montanhas
com sede de sol e de sal
e corre líquido sonhando
com a invasão ocre
do encontro pelo rio


tudo em meu poema
alaga e depois seca
em minha floresta
de papiros
enquanto escrevo
sobre meus desertos
e minhas águas





* Diálogo de Paulo de Carvalho com o poema Compondo sobre águas
* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2581

a lâmina



o abstrato impossível
constantemente renovado
diante dos meus olhos
por onde as águas
correm junto ao meio
fio da lâmina
das palavras
que penetram
afiadas e iluminam
os vermelhos versos
contidos no meu corpo



enchente



suo a densidade
dos meus dias
num poema caudaloso
que transborda aqui dentro
e me inunda de vozes
e de silêncios






* Publicado no Balaio Porreta 1986 nº 2452

arbórea



incorporei a poesia
arboreamente


incorpodespi o concreto
as paredes e o cimento
dos entendimentos


e mano a mano com manoel
fiz de mim maria-de-barro
construindo minha casa
de sensibilidades
nessa que me tornei
árvore



língua



suas palavras úmidas
de rio descendo montanhas
chegam a mim como ondas
de um mar que me lambe
e inebria

[começo a suar uma poesia
que é cheia do sal
da sua língua]



o peso




demorado, pessoal e intransferível
desmoronamento
às seis da manhã quando tudo morre
não há mais restos sobre a pia
apenas um imenso branco
manchado
de minha máscara derretida
que escorre pelo ralo
livrando-me do que sou


às seis da manhã ainda não
acordei de um sonho ou pesadelo
sou apenas delírio
um corpo astral em declínio
há um peso cimento em meus ossos
há um todo que eu não sou
há um todo que não sei ver


às seis quando eu furo meus olhos
às seis quando todos os artifícios falham
minha eterna negação
chega, espelho: não quero saber
se há alguém mais






* Poema escrito com Diego Paleólogo

efeito borboleta



não sei o que isso tem a ver com a nossa vida ou se chega mesmo a ter alguma coisa em nossas vidas que possa se fazer nossa um dia, embora eu perceba algumas das infinitas possibilidades de chegadas e partidas das quais ganharíamos algumas e perderíamos outras coisas na saída... e nem sei se haveria mesmo uma saída para nós além das contramãos nas maçanetas de portas abertas ou fechadas nas quais experimentaríamos cada uma das chaves que encontrássemos sob um provável vaso intencionalmente colocado nesse chão em que piso que vai até você que vive em outra realidade apenas separada por um mapa que não me serve de guia apesar de todos os satélites artificiais a distinguirem nessas paralelas e meridianas linhas que alguém isento de saudade e de desejos teve a estúpida idéia de desenhar só para demonstrar a distância que vez ou outra transformo em um poema que grita tanto quanto eu que falo baixo a mim mesma sobre minhas fantasias de trepar um dia inteiro com você e de recitar poesias e de querer o secreto que há em nós que somos estranhos um ao outro fora do sonho... e isso me faz lembrar de que ainda preciso olhar para o que é concreto e real e feito de tijolos ou aço ou plástico ou madeira ou ferro ou qualquer outra coisa palpável antes de atravessar as longas horas que os relógios anunciam quase num deboche ao mostrarem que você ainda não me aconteceu e talvez não aconteça nunca - esse nunca que é por sua ausência o avesso do sempre da sua presença em qualquer outro lugar longe da nossa hipotética vida que não tem nada a ver com nossas vidas mas que mesmo assim me faz pensar nessas infinitas possibilidades...




pagã



todas as noites
há um deus que me rapta
e me torna imortal
e o amor e a romã
correspondem-se em segredo
nesse rapto consensual



lunar



com os olhos cheios de noites
inexoráveis
entrego-me à fantasia
de fazer amor por poesia
[inominado desejo
que me leva a fixar-me
em sua órbita de palavras]



versos horizontais



copacabana está fria
e o horizonte distante
sobre a minha cabeça
nuvens, gaivotas e versos
faço poemas loucos
um por cima do outro
como se fizesse sexo
na areia molhada da praia
desejando acender
tua fogueira de palavras
para nossa poesia-luau



verona



céu à boca aberta


sorrisos de luas e estrelas
refletem-me miranda


meus precipícios ainda gravitam
em tua órbita de palavras


erva-de-passarinho



brotavam umas idéias estranhas
algumas de um inconcebível nunca
e muitas de um impermanente sempre

mas as flores e as árvores
ainda eram a maioria

e todas essas idéias floridas
aromáticas e eternas
ele plantava na cabeça
- na minha!

arrancá-las doeu à beça...



às vezes vento



e por falar em nuvens
não me conserve
em imprecisas palavras
em tintas sobre o papel
porque o que você vê
é apenas uma parte de mim
ou de um quebra-cabeça
das horas em que me distraio
na lucidez ou na loucura
do meu sorriso que perdeu
a eletrônica amarela de um 3x4
e sou demais para uma página
para um tela ou um retrato
não sou imagem nem miragem
sou de verdade

[uma verdade
que sopra nuvens]



outras intenções



ele
é do tipo que carrega flores na boca
e rega palavras só pelo prazer
de me ver perdida no jardim
em que sonho nua os sonhos dele

ele
me acende o olhar de menina
em plena luz do dia
e me faz pensar nas infinitas melodias
das quedas de cachoeiras
e em pés descalços no meio do mato

ele
enche meu olhar de encanto
de vinho, de avidez
e de malícias
e me descobre sem nenhuma disciplina
quando insinuo dias quentes de verão
e adivinho sabores e cheiros

ele
tem esse mistério e me fascina
mas eu quero os outros nele
eu quero muito mais

e
ele
é muito!



a janela improvável



um homem está na janela
e ele que não ocupa nenhum lugar
vem sendo reconhecido pela ausência
e pelo grito encerrado na boca
com cheiro de menta
– numa improvável janela
que o emperra...

a inexistente janela sem horizontes
se cansa de sustentar cotovelos
e passados
do homem anestesiado
– numa improvável janela
sem pássaros...

o homem não abre mais a janela
nem abre os braços
não ergue os punhos nem levanta a voz
e depois de cheirar gás carbônico
dorme e não sonha
– nem com a improvável janela
sem amanhãs...



até o fim



escrevo apesar das buzinas
do gás carbônico
do meu caminho sem árvores
das centenas de grades
por todos os lados

escrevo apesar de tudo
por tudo ou por nada
até que anoiteça de vez
e a poesia se apague
como se houvesse de repente
um blackout



transgressões

Para Rubens Pesenti


eu sei que você conhece as regras
e o lado do avesso da camisa
que estampa palavras no peito
eu sei que você sabe
que tudo que fizemos foi pouco
enquanto você já estava muito além
dessa liberdade que nos aprisiona
eu sei que você ri do nosso riso
e que você tem a cara lavada
para falar de tabus e de esfinges
eu sei que você matou o crime
os reis, os bispos, os cavalos
destruiu a fortaleza das torres
e comeu todas as damas
e ainda confessou as nossas vidas
estranguladas
por essas inúteis esperanças
e sei que nas horas vagas
você tem o uivo de um animal
bioquímico
e que por isso mesmo
tem essa capacidade absurda
de amar
e eu sei disso tudo
às segundas-feiras
quando acordo dos meus sonhos
e você, meu amigo
me captura en passant



poema têxtil

[Parceria com Mercedes Lorenzo, do blog Cosmunicando]


encolheu de repente
mesmo assim tento vesti-la
e passo primeiro a cabeça
pelo avesso de mim


depois da mente no ato
vou enfiando meus braços
então a palavra se esgarça
e eu ainda espremo
o que é preciso exprimir


do que já é coração
quando visto meu peito
fibra e urdidura

é apenas o começo

e nessa crescente alegria
de desmanchar a costura
nem poema caberia



degraus ou asas



escrevo e reinvento-me
em folhas brancas
nessa fotossíntese de sonhos
e nos azuis imprevistos
dos meus planos de vôo
para todo bater de asas
e todos os versos-ventos
soprados por meus dedos
me arrastam para dentro
onde rios murmuram em meu sono
e nuvens me emprestam escadas